Para estar com o outro - Parte 1: A (des)construção da confiança

Adentrei propositalmente o ambiente. Havia um alegre sussurro por lá. As mesas estavam dispostas uniformemente. Uma suave música tentava chamar os clientes para além de suas próprias vozes. E. também, havia o cheiro. Por sorte sobrara uma mesa, sincronicamente esperando por mim. A vista era fantástica, permitia-me ver a todos. Porém, desta vez, estava concentrado em mim, afinal estava sozinho. Não me demorei em escolher meu prato, tamanho o desejo de meu corpo. Tristemente meus olhos percorreram novamente o ambiente e lembrei-me de conversas com meus pacientes, onde salientava a importância da solitude. Lá estava eu novamente... Contatei meu celular e logo estava lendo uma interessante crônica onde falava da construção amorosa. Estava envolvido com a repercussão do tema após uma longa conversa no dia anterior. Algumas interessantes vontades começaram preencher espaço dentro de mim a cada novo parágrafo que lia. Entre um espaço e outro, permitido pela leitura, vozes ao meu lado se faziam presentes. Não me importei, até finalizar a leitura e descansar o peso da minha cabeça em meus próprios ombros, naturalmente tentando buscar um pouco de reflexão. Fui curiosamente "atrapalhado" pela discussão do casal da mesa ao lado direito e, antes que pudesse me interessar pelo conteúdo da discussão, lembrei-me do tempo em que ocupava esse mesmo lugar. Lugar estranho! Senti-me incomodado... pensei no incômodo que levei outrora para meus irmãos, quando apenas buscavam alimento para o corpo e contato para a alma. Percebi-me em tórrido arrependimento, até auscultar a conversa que transcorria ardentemente. Havia um incômodo dele, e um pedido mais intenso, para que ela mostrasse o conteúdo expresso no celular dela. Cuidadosamente, ela olhou para meu lado, tentando perceber se estava participando da conversa deles. Pus minha atenção em meu prato e em minha taça de vinho, que já estavam presentes na minha frente. Ele insistia com afinco para ver o conteúdo ocultado por ela, que pacificamente tentava acalmá-lo, justificando que poderia verificar o conteúdo mais tarde. Por fim, ela venceu, ele acalmou-se e puderem, por fim, escolher seus pratos. Achei interessante participar da discussão como ouvinte e queria estar presente minutos mais tarde para assistir o desfecho. Mas seria impossível, infelizmente. Porém, coloquei-me a assistir os outros casais que desfilavam ao meu redor, num misto de interesse e curiosidade, ainda sem saber onde me levaria essa intrometida atitude. No meu lado oposto, havia outro casal, creio que estavam saindo recentemente, pois havia um hiato entre uma frase e outra. Reparei também, que a mulher conduzia o diálogo com mais afinco, mostrando interesse por Tony Bennett e, os pais do rapaz, por Willie Nelson. Que interessante! Quando havia aquele silêncio constrangedor, ele afirmava repetida vezes: "que mais...?!". E, então, ela se punha a falar novamente, traçando outra história onde continha uma estranha semelhança em suas frases: "meu ex...". Fiquei a pensar o que ela estava fazendo lá, já que falava enfaticamente de  uma relação anterior. Enfim, logo me desinteressei! A minha frente à esquerda, havia um casal que aparentemente já se conheciam, olhavam-se com intimidade, havia uma conversa pausada e harmônica, além dos semblantes permanecerem serenos e conectados na conversa que, infelizmente, não podia auscultar devido a distância. Não obstante, minha impressão foi de proximidade e participação. Foi, então, que avistei aqueles que fariam a diferença pra mim naquela quente noite de sábado. Eles me permitiram ver para além deles, inspirando as palavras que seguem. Não conseguia ver o homem do casal, ele estava virado com suas costas para mim. Mas enxergava muito bem a bela mulher que dirigia com expressão de cuidado suas palavras até seu par. Foi bonito de ver! Provavelmente, teria em torno de 30 anos, talvez uma década a menos do que a mulher do primeiro casal. Tinha uma postura elegante e gestos extremamente medidos, o que a deixava ainda mais bela. Tinha longos cílios que foram mantidos no mesmo lugar por todo o tempo que estive a observar. Seus olhos olhavam diretamente ao seu interlocutor e, por vezes, suas mãos buscavam a bebida que lentamente degustavam, como um veneno que necessita de tempo para agir. As mãos dela também buscavam seu par, num ato expressivo de carinho contínuo, pois tudo era harmônico ali. Olhos, mãos, postura, ações... seu todo estava presente e mostrava-se curiosamente único ou, se preferirem, inteiro. Por vezes, percorria o espaço com seus olhos, como que buscando alguma resposta, e retornava ao seu interlocutor integralmente. Achei aquilo tão incrível, de tão simples. Porém, antes de concluir, fui sorrateiramente interrompido pelo primeiro casal, pois num súbito o rapaz se levantou afirmando precisar ir até o carro. Tão logo levantou-se, me fiz presente novamente, e em segundos a mulher pegara seu celular e permanecera com seu dedo indicador grudado na tela, como que apagando o motivo do incômodo pregresso. Tive vontade de ir falar com ela, mas o máximo que fiz foi dizer com meus olhos que estava a par de sua ocultação. Foi, então, que a catarse aconteceu e percebi o que precisa enxergar.

Os relacionamentos verdadeiros permitem construções coletivas, porém, inicialmente, somos singularidades. É claro. Tudo começa, ou deve começar, conosco. Cada rica possibilidade de construção bilateral, precisa ser explorada em sua própria individualidade. Falemos da confiança, por exemplo. Sim, a confiança é, como costumam dizer, um alicerce necessário no relacionamento entre duas pessoas que se amam. Não a confiança que usualmente falamos, genericamente e taxada como normal, ou seja, pertencente a categoria das normopatias. Refiro-me a confiança que permite-nos com-fiar. Não a confiança vista enquanto um dado prévio e necessário, mas sim como algo que atribuo valor na relação com o outro. Algo que fio junto, que demanda construção e, naturalmente, tempo. Com-fiar é fiar com, necessitar de alguém, entregar-se na direção do outro, estabelecer entrega ao seu par, criar fiança, afiançar minha vida ao outro. Não creio que seja fácil, ainda mais na modernidade que vivemos, onde com um click apagamos ou encontramos novo(a) pretendente. A construção da confiança começa comigo, mas necessita do outro. Fiança unilateral, não permite a continuidade, a própria construção. E, foi essa mesma construção que pude ver refletido no olhar daquela elegante criatura à minha frente. Ela "falava" pelos poros, por cada gesto seu que estava com seu par, estava inteira ali, nada à sua volta importava mais que as doces palavras possivelmente pronunciadas ou as mais rasas reflexões daquele momento. Senti ligeira inveja branca e alegria considerável. Como se tivesse encontrado nos olhos daquela doce garota a resposta para minha pergunta. Consegui assistir sua integridade, seu foco e a manutenção da sua própria escolha. E, como homem, intui a felicidade expressa naqueles gestos tão banais que, provavelmente, fazem dele o "escolhido"! Ademais, consegui assistir presencialmente, embora de uma maneira não tão natural, o que significa respeito. Sim, porque é claro que poderia mexer os olhos em outras tantas direções, como poucos não fazem, percorrendo aleatoriamente seu ambiente. Lembro-me de Bernardo Soares quando dizia que "não vemos o que vemos, vemos o que somos". Embora meus olhos estivessem vendo, vi por além deles, vi a seriedade de cada encontro simples e a importância de estarmos inteiro em nossas escolhas, principalmente a amorosa. E, Rubem Alves, com sua eterna sabedoria, soprou em meus ouvidos: "Mas é preciso escolher. Porque o tempo foge. Não há tempo para tudo. Não poderei escutar todas as músicas que desejo, não poderei ler todos os livros que desejo, não poderei abraçar todas as pessoas que desejo. É necessário aprender a arte de “abrir mão” – a fim de nos dedicarmos àquilo que é essencial". O essencial é ser inteiro com nossa escolha, com o que desejamos a nós e abrirmos mão de interesses escusos a própria escolha. A (des)construção da confiança incita o compartilhar de maneira única e íntegra, distinta dos interesses do entorno. Duas realidades, dois casais no mesmo espaço, e uma distância enorme entre eles. Podemos outorgar nossa reflexão? Cabe aqui breve colocação, talvez apropriada, que me lembra um de meus ouvintes nos últimos dias: posso, ao mesmo tempo, manifestar minha idade, independente dela própria. Posso rolar no chão com meus filhos e torna-me criança no mesmo momento que sábio ao ouvir o que vovô tem a me dizer. Entretanto, quando o assunto é sobre amantes: "Os jovens amantes procuram a perfeição, velhos amantes aprendem a arte de unir retalhos e descobrem a beleza na variedade das peças..." (do filme "Colcha de Retalhos").

Provavelmente, a beleza esteja no gesto de estar inteiro, íntegro à própria escolha, utilizando as experiências como pano de fundo para amorosamente compartilhar, fiá-las com respeito em direção ao outro, conquistando o primeiro grande desafio do relacionamento a dois: a confiança.

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