Meu coração fica junto ao coração dela... - Rubem Alves
“A boca fala do que está cheio o
coração”: esse é
um ditado da sabedoria judaica, que se encontra nas Escrituras Sagradas. Bem
que poderia ser a explicação sumária daquilo que a psicanálise tenta fazer:
ouvir o que a boca fala para se chegar ao que o coração sente. Acontece comigo.
Cada texto é uma revelação do coração de quem escreve.
Pois o meu
coração ficou cheio com uma coisa que me disse minha neta Camila, de onze anos.
O que ela falou fez meu coração doer. Como resultado fico pensando e falando
sempre a mesma coisa.
A Camila
estava na sala da televisão sozinha, chorando. Fui conversar com ela para saber
o que estava acontecendo. E foi isso que ela me disse: “Vovô, quando eu vejo
uma pessoa sofrendo eu sofro também. O meu coração fica junto ao coração
dela...”
Percebi que
o coração da Camila conhecia aquilo que se chama “compaixão”. Compaixão, no seu
sentido etimológico, quer dizer “sofrer com”. Não estou sofrendo. Mas vejo uma
pessoa sofrer. Aí eu sofro com ela. Ponho o outro dentro de mim. Esse é o
sentido do amor: ter o outro dentro da gente. O apóstolo Paulo escreveu que
posso dar tudo o que tenho aos pobres, mas se me faltar o amor, nada serei.
Porque posso dar com as mãos sem que o coração esteja a sentir. A compaixão é
uma maneira de sentir. E dela que brota a ética. Alguém foi se aconselhar com
Santo Agostinho sobre o que fazer numa determinada situação. Ele respondeu curto
e definitivo: “Ama e faze o que quiseres.” Pois não é óbvio? Se tenho
compaixão nada de mal poderei fazer a quem quer que seja.
Fernando
Pessoa escreveu um curto poema em que descreve a sua compaixão. Por favor, leia
devagar: “Aquele arbusto fenece, evai com ele parte da minha vida. Em tudo
quanto olhei fiquei em parte. Com tudo quanto vi, se passa, passo. Nem distingue
a memória do que vi do que fui”. Compaixão por um arbusto... Ele explica
esse mistério da alma humana dizendo que “em tudo quando olhei fiquei em
parte. Com tudo quanto vi, se passa passo...” Os olhos, movidos pela
compaixão, o faziam participante da sorte do pequeno arbusto...
Eu já sabia
disso. Mas nunca havia enchido o meu coração ao ponto de doer. Doeu porque
liguei a fala da Camila a essa tristeza que está acontecendo no
Brasil.
Os corruptos
são homens que passaram pelas escolas, são portadores de muitos saberes. Tendo
tantos saberes, o que lhes falta? Falta-lhes compaixão.
A falta de
compaixão é uma perturbação do olhar. Olhamos, vemos, mas a coisa que vemos fica
fora de nós. Vejo os velhos e posso até mesmo escrever uma tese sobre eles, se
eu for um professor universitário. Mas a tristeza do velho é só dele, não entra
dentro de mim. Durmo bem. Nossas florestas vão aos poucos se transformando em
desertos mas isso não me faz sofrer. Não as sinto como uma ferida na minha
carne. Vejo as crianças mendigando nos semáforos mas não me sinto uma criança
mendigando num semáforo. Vejo os meus alunos nas salas de aulas, mas meu dever
de professor é dar o programa e não sentir o que os meus alunos estão
sentindo.
De que vale
o conhecimento sem compaixão? Todas as atrocidades que caracterizam os nossos
tempos foram feitas com a cumplicidade do conhecimento científico. Parece que a
inteligência dos maus é mais poderosa que a inteligência dos bons.
Sabemos
como ensinar saberes. Há muita ciência escrita sobre isso. Mas não me lembro de
nenhum texto pedagógico que se proponha a ensinar a compaixão. Talvez o livrinho
de Janucz Korczak Como amar uma criança . Mas Korczak é uma exceção. Ele
sabia que para se ensinar algo a uma criança é preciso amá-la primeiro. Korczak
era um romântico... Por isso o amo...
Aí fiz a mim
mesmo uma pergunta pedagógica: “Como ensinar a compaixão? Conversando sobre isso
com minha filha Raquel, arquiteta, ela se lembrou de um incidente dos seus
primeiros anos de escola, quando menina de sete anos. Seria o aniversário da
faxineira, uma mulher que todos amavam. A classe se reuniu para escolher o seu
presente. Ganhou por unanimidade que, no dia do seu aniversário, as crianças
fariam o seu trabalho de faxina. Disse-me a Raquel que a faxineira
chorou...
Sei que as
crianças aprendem com o olhar, o olhar das professoras. Elas sabem quando as
professoras as olham com os mesmos olhos com que Fernando Pessoa olhava o
arbusto. Sei também que as estórias provocam compaixão, quando o leitor se
identifica com um personagem. Sei de um menininho que se pôs a chorar ao final
da estória O patinho que não aprendeu a voar. Ele teve compaixão do
patinho. Identificou-se com ele. Vai carregar o patinho dentro de si embora o
patinho não exista. Lemos estórias para as crianças e para nós mesmos não só
para ensinar a língua mas para ensinar a compaixão.
Mas continuo
perdido. Preciso que vocês me ajudem. Como se pode ensinar a compaixão?
|