Regando nosso Jardim...
Num mundo onde somos colocados
constantemente à prova; onde os valores materiais suplantam os espirituais, e
perdemos a conexão com o sagrado; onde andamos acelerados em busca da próxima
meta, seja ela qual for; onde nossos antepassados são deixados relegados a
segundo plano como nossos próprios pais; onde as crianças seguem desoladas rumo
ao próximo cuidador; onde a reunião familiar já não existe mais e a comunicação
emudecida; onde nos resta a conexão é realizado com o que habita fora nós; onde
prevalece as crises de ansiedade e das relações amorosas mal sucedidas; onde o privado vira público e entorpece a “normalidade”...
São muitos nossos motivos
atuais que nos levam, regularmente, ao desencontro de nós mesmos. Mais do que
emantar um novo coro do que acontece ao lado de fora de nossa vida, pois isso
se tornaria repetitivo, creio que chegou o momento do questionamento (e reflexão)
acerca de quem estamos nos tornando. Agostinho, pensador do século V, também
conhecido como Santo Agostinho, afirmava: “Não sacia a fome quem lambe pão pintado”. Sua afirmação suscita, curiosamente, esse olhar
moderno, desprovido de reflexão e subjetividade, e bastante curioso: não posso
matar minha fome apenas imaginando um “pão”... A figura de um pão não permite
que mate minha fome, isto é, a base atual que vivemos, num mundo acelerado e
voltado para superficialidade, não nos preenche verdadeiramente, tornando-se
insuficiente após um tempo. Quantos de nós não preferem se manter sem uma
verdadeira meta, numa busca superficial, procurando apenas o prazer momentâneo
numa imagem que adquire status de realidade? Em outras palavras, todas aquelas
coisas sonhadas que supostamente matariam minha fome, ou minha sede de vida,
são obsoletas e absolutamente temporárias. C.G. Jung, influente psiquiatra e
psicoterapeuta do século XX e fundador da Psicologia Analítica, nos põe a
pensar sobre o tema. Cunha o termo metanóia, união do prefixo “meta”, com o
sentido daquilo que está além, portanto que promove a transcendência; com o
sufixo “noia”, significando razão, compreensão ou consciência. Assim sendo,
metanóia seria a possibilidade de expansão de consciência, de transcender a
razão lógica ou, mesmo, de modificar nossas crenças e convicções.
Partindo deste pressuposto, a vida só ganharia
sentido ao encontrar uma meta verdadeira que transcendesse o já existente. Que
pudesse não ser apenas algo “normal”, ou o que o Professor Hermógenes chamou de
normose,
num dos brilhantes textos escritos por Martha Medeiros[1]. Normose,
a doença de ser normal, a doença de manter o existente. Sendo assim, a
sociedade contemporânea nos surpreende com uma série de pré-conceitos para que,
após assimilados e processados subjetivamente, encontremos nossa real
identidade. Ou seja, podemos através dos valores existentes transcendermos em
busca de novo sentido existencial. A busca deste sentido, ou metanóia, é capaz
de trazer a transcendência de nosso ser como um todo.
E, como ir em busca de nossa transcendência numa
sociedade que evidentemente prioriza o que é normal?
É sempre muito difícil apontar um caminho a quem
quer que seja. A normose atormenta a todos nós! Via de regra, provoca, ao longo
do tempo, desarranjos dos mais variáveis, entre eles, sintomas físicos. O fato
de reproduzirmos inconscientemente condutas e crenças coletivas, impede de
processarmos as experiências de forma mais ampla e significativa, tornando
nossa vida automatizada e sem sentido.
Costumo
dizer, que cada qual é capaz de encontrar o próprio caminho e o momento
adequado de segui-lo. O fundamental é escolhermos um caminho e não
continuarmos sem questionamentos ou reflexões. Lembro-me da obra infantil de
Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland), de Charles Lutwidge Dodgson
(1865), sob o pseudônimo de Lewis Carroll, onde Alice pergunta ao gato em meio
a seu caminho metanóico:
- “Você
pode me ajudar, gato?”
- E
o gato replica: “Para onde você está indo?”
-
Não sei, estou perdida!, responde Alice.
-
Para quem não sabe onde está indo, qualquer caminho serve, conclui o gato.
Essa talvez seja nossa grande questão na atual contemporaneidade:
“Para onde estou indo?
Frente essa ótica, frente a essa maneira de
enxergar a realidade, intuo que o movimento necessário pode ser concentrado em
apenas uma palavra: diálogo – (por vezes, monólogo). Sim, a comunicação comigo
traz um caminho para a reflexão. A reflexão, por si só, gera movimento. E, o
movimento, a uma resposta. Tudo aquilo que não é comunicado, conversado, tende
a desaparecer, não se mexer, apodrecer!
Imaginemos algumas de nossas importantes relações com
alguém que nos é/foi caro. Imaginemos quando seguramos palavras e/ou
sentimentos. O que acontece? A vida é gerada através do movimento contínuo...
aquilo que move, que nos faz seguir, investir, criar, providenciar, movimentar,
regar... tudo o que se mantém igual, parado, “equilibrado”, deixa de ter vida.
Assim, ao assumirmos uma mesma posição diante da vida, apodrecemos em nós
mesmos, deixamos de regar nosso jardim. Tudo aquilo que não comunicamos a nós
e/ou ao outro entra em decomposição, assume a forma normótica, deixa de ter
vida...
Então, vem Cecília Meireles em mais um de seus
gigantes momentos de felicidade:
“Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim”.